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Lidando com as sombras na quarentena.

Esse texto deu origem a Live


Rosine Mello:

O yoga tem como principal objetivo acalmar as flutuações mentais. O Yoga Sutra de Patanjali é o principal livro dos yogues e orienta essa caminhada nos mostrando os obstáculos e como superá-los. São 8 componentes que nos ajudam nesse caminhar, vou citar 2 muito conhecidos no ocidente, asanas e pranayamas, escolhemos começar o caminho por eles, já que são mais fáceis de se lidar, ir direto para a mudança de comportamento seria muito brusco. É em cima do tapetinho que o

praticante começa a ter contato com as suas reais dificuldades. Somos seres duais, alegria - tristeza, bom-mau, o caminho do yoga nos coloca de frente com as nossas dualidades, com nossos Kleshas (obstáculos), avdya - ilusão, amista que nos faz crer que somos o ego – personagens-, dvesha, apego, desejo, desejamos o que o ego quer. Neste momento temos que realmente ficar, paramos tudo, devido a pandemia no mundo e temos que nos ver, e agora? Viemos de um século onde tudo era externo, onde tudo se resume a consumo, de aparências, de papeis. de viver para o externo, de procurar fora nossas satisfações e imagens. Como conviver com um contexto onde é proibido sair, sem saber o que vai acontecer?

Cristiane Dias:

Vivemos um momento singular na nossa história de vida recente. A minha geração assim como as precedentes até o início do século passado nunca atravessara uma pandemia ou uma situação de catástrofe global que nos causasse tamanho estresse e alterasse tanto a rotina de vida.

O contexto do isolamento em que nos encontramos, embora importante do ponto de vista sanitário, provoca desafios enormes para o nosso bem-estar psíquico, pois nos exige algo a que não estamos acostumados: parar. Oriundos de uma sociedade como a nossa, que demanda continuamente rapidez de resposta e velocidade de raciocínio, de conexão, em que a palavra de ordem é produzir e gerar (bens de consumo, riqueza, etc), e onde o “mais” é quase sempre insuficiente, ser obrigados a parar corresponde quase à puxar o freio de mão de um carro em plena descida. Para complicar ainda mais a situação, viemos de um Pais cuja reputação é reconhecida internacionalmente pelo caráter festivo e acolhedor, e também por ser “um pouco avesso” à regras de modo geral, o que para

alguns faz parte do charme da nação, mas que em nada ajuda em tempos de pandemia...

Estamos por isso, diante de uma situação nova que provoca inúmeras incertezas sobre o nosso presente e sobre o nosso futuro e isso altera a sensação, ilusória ou não, que tínhamos de controlar nossas vidas. De repente, o que era normal e esperado passou a ser anormal e vice-versa e nossa capacidade de adaptação se encontra duramente “posta a prova”. Em geral não gostamos de incertezas, nosso cérebro racional é forjado de forma a nos proteger de eventuais riscos e numa cultura altamente exigente como a nossa, prever e se precaver de imprevistos tornou-se regra.

Confrontados a essa extrema dualidade: em que por um lado nos condicionamos a calcular e prever todas as variáveis e, por outro, somos, agora, obrigados a navegar em mares agitados nunca dantes navegados, onde tudo o que temos são não mais que incertezas, nos vemos muitas vezes perdidos e angustiados. Desenvolvemos uma inteligência racional a um ponto extremamente elevado nas ultimas gerações, nos aprimoramos em tecnologias, aprendemos línguas e culturas diferentes, no entanto as habilidades de que mais necessitamos nesse momento são aquelas que sempre foram “desprezadas” pela mente racional pois elas não seguem as leis da física cartesiana e da matemática. A defasagem entre o intelecto e o nosso lado emocional é algo de que muito têm se falado ultimamente em determinados meios, as teorias da inteligência emocional estão aí para não me deixar mentir. No entanto, na prática face a uma situação como essa nos encontramos sem rumo, pois nosso intelecto sozinho não pode fornecer todas as respostas. Habituados a tudo controlar, a instabilidade em que vivemos nos provoca insegurança e esta, por sua vez, nos gera medo e às vezes até pânico.

Rosine Mello:

Quando praticamos yoga, observamos principalmente o nosso estado mental, como reagimos quando encontramos dificuldades, qual a nossa reação ao nos depararmos com o fácil. Uma prática de asanas, em geral, leva o corpo a sair da zona de conforto, as posturas mais simples são as mais difíceis. Exemplos disso são: Tadasana, a postura da montanha, o normal é que o peso do corpo, quando você está em pé, vá para frente dos pés, isso é o normal pois o caminhar é uma sucessão de desequilíbrios, seguidos de novos equilíbrios. Mas em uma prática de yoga o peso tem que ficar dividido por todo o pé, você não vai a lugar algum, postura estática, que como não projeta para onde ir, traz a mente para o presente, para o agora. Shavasana, a postura do cadáver, quantas pessoas na prática do dia não conseguem se deitar, soltar o peso do corpo no chão e aceitar a imobilidade? Várias. A grande maioria mexe dedo, se coça, se movimenta, é muito difícil aceitar que não podemos controlar e agir o tempo todo, encaramos os nossos limites. Essas duas posturas nos mostram que nós não estamos no controle e isso dá um pouco de insegurança por estarmos fora da nossa zona de conforto e segurança. O que isso tem à ver com as nossas sombras?

Cristiane Dias:

Tudo, as sombras são aqueles aspectos nossos dos quais não temos tanto orgulho; tentamos escondê-los por medo da rejeição social caso sejam “descobertos”. Às vezes esse processo vai tão longe que, muitas pessoas têm a sensação de não viverem suas próprias vidas, de serem meros expectadores no teatro da existência, ou então marionetes nas mãos de outros. Quando vivemos de forma muito intensa nesse ímpeto de “esconder nossas mazelas”, fabricamos um “falso self” que pode originar doenças das mais variadas, tanto físicas como mentais. Sabemos que mesmo em situações normais essa equação pode ser fonte de grandes tensões para o Ego, sobretudo se formos do gênero que deseja controlar tudo. Quanto maior for a pressão exercida pelos mecanismos de controle do Ego, que constituem na verdade a sua defesa, maior a propensão a ocultar certas partes da personalidade que consideramos mais vergonhosas. Se essa pressão for demasiado grande podemos até mesmo desencadear processos de doença física ou mental, ou passar a manifestar comportamentos inadequados ou excessivos, tal como vemos em várias situações do quotidiano (por exemplo, lembro-me o desenho animado do pateta que quando dirigia um carro se transformava exatamente naquilo que ele detestava quando virava um simples pedestre).

Apesar disso, em circunstâncias normais, podemos contar com a presença de alguns elementos quotidianos que “ajudam” a ocultar essas partes de nós: saímos para fazer compras, encontrar amigos, jogar conversa fora, temos mil coisas a resolver fora de casa, ou então, nos conectamos freneticamente via celular ou computador, assistimos séries, novelas, netflix e com isso vamos empurrando o barco até onde der. Todos fazemos isso. E até certo ponto tudo bem, não precisamos viver imersos numa crise existencial. O problema, se podemos defini-lo assim, é exatamente quando apenas fazemos isso de nossos dias, ligando o automático sem refletir sobre nosso quotidiano, sobre o que sentimos, e como sentimos.

E aí entra o corona, esse vírus que nos obriga a fazer o que tanto tememos: parar. Se antes tínhamos nossas pequenas “fugas” para ajudar a mascarar nossos sentimentos e aquilo que não ia tão bem, agora a história é outra. O isolamento social nos distanciou dos outros e das nossas distrações, mas nos aproximou de nós mesmos e de uma forma que muitos não estavam preparados. Isso porque mesmo que não viva sozinho, que esteja acompanhado de família ou amigos, quem está ai com você é, em ultima instância, você mesmo. E, acredite uma das melhores (mas nem sempre mais agradáveis) formas de se conhecer é através do reflexo que os outros dão sobre você mesmo e, às vezes, esse processo pode ser bem doloroso. Se morar sozinho também pode estar passando pela mesma situação.

A pandemia nos colocou, então, face às nossas mazelas, nossos defeitos, nosso lado mais obscuro e do qual não temos tanto orgulho. O eu que chamo de: as nossas sombras. Mas de onde vêm essas sobras? Dentro da psicologia e, esse termo é mais utilizado pela psicologia jungiana, a sombra vêm da nossa infância, da época em que nossa mente racional ainda não era completamente desenvolvida e tudo o que vivíamos era passado pelo crivo de uma psique imatura, dependente e que, muitas vezes, não tinha capacidade suficientemente para compreender tudo o que se passava à sua volta. A criança, nesse contexto, tem tendência à imaginar, fantasiar que tudo o que se passa é de algum modo culpa ou responsabilidade dela. Sem entender direito o mundo dos adultos ela forja para si, um Ideal de Eu, uma capa ilusória para tentar obter o que tanto necessita: a aprovação e a admiração dos pais ou das figuras cuidadoras.

Isso é um processo muito comum, mesmo quando temos famílias atenciosas e amorosas (o que nem sempre é o caso), pois muito do que se passa pertence ao inconsciente dessa família. Pode até haver um cruzamento de sombras que faz com que nós herdemos as sombras dos que estão à nossa volta, as quais vão, assim, passando de geração em geração. Sabe aquele segredo de família guardado a quatro chaves? Pois é, um dia ele vêm à tona, e quanto mais demorado for esse dia e mais esforços forem feitos para o manter no esquecimento, maiores as chances dele eclodir com grande sofrimento psíquico para os envolvidos. Quando não queremos reconhecer algum aspecto nosso que nos incomoda temos tendência a projetar para o outro tudo aquilo que rejeitamos e aí a vida pode virar um ciclo de projeções e reações a projeções infindável.

Rosine Mello:

O iniciante ao invés de se observar observa o outro, como a prática do outro é legal, intensa, mas se esquece de si. A prática de asanas e pranayamas também nos leva a observarmos o nosso corpo e as nossas dores. As pessoas chegam para a aula com alguma dor e ao terminar, a dor não está mais lá, mas é a partir daí, com a respiração e a mente calmas, que ela pode começar a pesquisar o motivo da dor. As posturas invertidas, fazem com que as pessoas se vejam sobre outro ângulo, perde-se totalmente a noção de espaço e tempo (é o autêntico onde estou e quem sou), principalmente a invertida sobre a cabeça (salamba sirsasana) e a invertida sobre as mãos (Adho Mukha Vrksasana), embora todos queiram fazê-las as reações a elas são bem diferentes. Alguns se jogam e é preciso até dar uma freada nesse ímpeto, pois as vezes o corpo não está preparado para a postura, outros são reticentes. As reações é que contam, alguns choram, outros gritam, outros simplesmente fazem. As práticas onde o mergulho interior é muito intenso, as restaurativas, asanas com apoios de

mantas, bolster, pranayamas e meditação leva o iniciante a começar a se perceber, embora no início ele durma aos poucos a mente, o corpo e a respiração se integram ficando mais fácil não dormir e começar a observar os pensamentos, iniciando assim o caminho do autoconhecimento. Alguns se dão conta do que está acontecendo e decidem parar por ali, outros continuam no caminho, começam a procurar leituras sobre a filosofia do yoga. Uma vez uma aluna me disse: ”A minha relação com você é de amor e ódio, aqui eu te odeio por que você me tira da zona de conforto, mas no dia seguinte em casa eu te amo, por que me sinto muito bem.” O caminho do yoga é esse, igual a vida, as vezes descobrimos o nosso lado bom, outras vezes encaramos os nossos fantasmas. até o dia que nos tornamos seres unos sem a representação de papeis, mas conscientes e em contato com a nossa essência. Que processo é esse que nos faz ver primeiro o outro e só depois nos observarmos?

Cristiane Dias:

Temos tendência a criticar no outro o que mais nos incomoda ou o que não podemos admitir em nós mesmos. Quando reagimos a uma projeção corremos o risco de nos tornamos essa projeção.

Por outro lado, outros pensadores e filósofos, principalmente orientais, já falam desse aspecto oculto da personalidade também há bastante tempo. Por exemplo para D. Chopra, as forças opostas fazem parte do Universo e sem elas não poderíamos viver, a energia criadora e a energia da inércia estão sempre presentes, se revezando para que possamos ser um sistema viável. O mesmo acontece com as sombras, elas fazem parte da psyché humana e, quanto mais as afastarmos mais elas se farão presentes, sobretudo nesse contexto de isolamento: o que você resiste persiste.

Ao contrário do que sua mente racional acredita, as suas sombras não estão aí para te prejudicar, ou para dificultar ainda mais esses tempos de pandemia. Elas estão aí para que você compreenda que ainda existem partes suas que precisam de atenção e cuidado; não é “jogando para debaixo do tapete” que você calará o sofrimento que esta aí dentro. E o mais interessante nesses tempos de isolamento é se dar conta que mesmo aspectos que você julgava sanados podem reaparecer de formas diferentes, com uma nova roupagem, indicando que você ainda precisa olhá-los com carinho e dedicação. Não considere suas sombras como suas inimigas, pois elas não o são. Elas podem revelar inúmeras forças suas até então desconhecidas. Como desenvolver a coragem sem nunca ter conhecido o medo? Como saber o que é a felicidade sem nunca ter experimentado a tristeza? Como saber o que é a luz sem integrar a sombra? Mesmo as sombras mais duras aparecem para que a gente reconheça, integre aspectos nossos e, sobretudo, para que a gente expanda nossa capacidade de acolher e de nos aceitarmos tal como somos.

Reflita: O que lhe impede de olhar as suas sombras? Medo da rejeição? Da desaprovação? De se sentir sozinho? De ser julgado? O que é? Reserve alguns minutinhos para ponderar sobre essas questões.

É fácil nos amarmos quando tudo vai bem, quando estamos fortes, bonitos e bem sucedidos, mas isso é só vaidade o verdadeiro amor de si próprio esta além. E a beleza da viver está justamente aí, nesse percurso de descoberta.

Mas se para você esse confronto com as sombras ainda está muito pesado, eu proponho um exercício que você só deve fazer quando sentir que tem segurança suficiente para tal ou na presença de um terapeuta.

Rosine Mello:

Além do yoga o que se pode fazer em casa para amenizar um pouco esses sentimentos que afloram devido ao contexto do mundo atualmente?

Cristiane Dias:

Este exercício:

Quando estiver num desses momentos difíceis, deixe vir à sua tela mental a recordação da última vez em que se sentiu assim. A seguir pergunte-se novamente qual foi a vez anterior a essa que se sentiu dessa forma e assim por diante até chegar a um momento em que a memória não recuará mais. Não julgue o que vier, aceite, acolha, nem sempre nossa mente racional compreende ou aceita o conteúdo que aparece, são as velhas defesas que vêm à tona...

Viva essa cena mental, que talvez seja a mais antiga relacionada a esse fato, a memória original e que provavelmente se situa na infância (mas nem sempre, isso não é regra). Reviva a cena, as tristezas, as dores, a frustração, a decepção, o medo, o que vier. Se veja nela, sinta–se de dentro.

Agora coloque você adulto hoje com toda a sua capacidade de compreensão e inteireza dentro da cena. Aproxime-se da criança ou do jovem ou do adulto que você é. Retire-a da cena se achar necessário e leve-a para um lugar onde se sente bem e diga: Isso passou, você não precisa mais se sentir assim, eu estou aqui para te ajudar e te confortar. Veja-se fazendo o que acha que a sua parte mais fragilizada precisa naquele momento: abrace-a, coloque-a no colo, acalente-a, diga o que ela necessita ouvir. Aceite as emoções que vierem, deixe-as sair. Faça algumas respirações profundas para relaxar e integrar.


Live : Lidando com as sombras na quarentena. Assista aqui.


Referências:

Yoga Sutra – T.K.V. Desikahar

Autoras:

Rosine Mello - Yoga

Cristiane Dias Doutora em Psicologia

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